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A importância do ano letivo ou como estamos fingindo que ele existe

Atualizado: 18 de jan. de 2021

Marília Moreno



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*texto originalmente publicado em 04/06/2020 no blog 2 LITRÃO e, infelizmente

pouco se alterou desde então, exceto pelo fato de que os acessos diminuíram,

estudantes perderam familiares para o COVID-19 e a política educacional em São

Paulo permanece inaceitável, injusta e indigna diante da grandiosidade que é educar.


Entenda porque uma geração pode acabar não tendo o ano letivo


Pensem comigo: tenho 199 estudantes em 7 turmas de Ensino Fundamental I, dos quais apenas 29 acessam de forma bem esporádica as atividades da plataforma virtual que insistem em chamar de sala de aula. Agora façamos uma pausa para interpretar os dados. 1, 2, 3... Fez? Eu fiz.


O caderno Trilhas de Aprendizagens foi aparentemente entregue a todas as crianças da minha EMEF. Digo aparentemente porque temos famílias que, na prática, estão desaparecidas. Os endereços cadastrados ou não existem ou estão errados, algumas famílias vivem em comunidades onde os correios não entram e outras, apesar de possuir o endereço cadastrado corretamente, nos informaram que o material nunca chegou.


E quem não poderiam usar o EAD?


Aqui na zona norte de São Paulo, não muito longe do bairro de Santana, existem comunidades tão fechadas que o correio não consegue realizar suas entregas, seja pela impossibilidade do terreno ou por não terem autorização da “coordenação” do local. Nestes locais também não entra o respeito e, portanto, o ensino remoto público e “gratuito” (outra

mentira, estudantes pagam pelos dados que usam) para todes também tem ficado de fora. Cenário muito diferente daquele que deveríamos ter.


Com as portas da escola abertas somos capazes de auxiliar, cuidar e alimentar as crianças. E isso é uma escola, um lugar que integra a vida de forma ampla para além da transmissão de conteúdo. Acontece que com a pandemia de COVID-19, as portas estão fechadas para estudantes, educadoras e educadores, que agora se comunicam virtualmente. Bem, nem todes.


Do trabalho à exaustão


Todos os dias, eu vou dormir exausta dos múltiplos grupos de trabalho, das diversas reuniões virtuais e do acúmulo de tarefas burocráticas (enviadas com atraso pela SME) me perguntando se nossas crianças ainda estão vivas. Sinto falta da minha pitocada , como costumo chamar as crianças cheia de amor e agora com lágrimas nos olhos. Eu não me

formei uma transmissora de conteúdo, eu me formei aprendiz da essência educadora. Tive o privilégio de encontrar na minha formação pessoas que me ensinaram a olhar os pequenes humanes para além de sua capacidade técnica. Aprendi que eu não ensino mais do que me ensinam e aprendi a criar possibilidades para que estudantes se expressem com carinho, atenção, respeito e diversamente. E sigo pequena, muito menor que as crianças,

ainda aprendendo com muito orgulho de ser professora da rede pública o que significa a prática educativa.


Desde que o ensino remoto emergencial teve início, estamos nos desdobrando para conseguir transmitir de alguma forma tudo o que acreditamos ser um ensino de qualidade. Todas as orientações didáticas, componentes curriculares, matrizes de saber, ODS, etc. precisaram ser condensadas em cliques, vídeos no youtube, adaptação da linguagem,

reuniões e mais reuniões para descobrir como ensinar sem compreender a tecnologia necessária e sabendo muito bem que a maioria dos estudantes não a possuem. Temos feito tudo que está em nosso poder para que todos os estudantes entrem na plataforma virtual: ligações, mensagens nas mídias sociais, vídeos explicativos, comunicados, recados via moradores do bairro e, até agora, 29 de 199 crianças.


Tudo foi feito às pressas. Não tivemos tempo de entender como seria a nossa vida na quarentena, não nos foi dado o direito ao planejamento, não fomos consultados em nada e as normativas ainda estavam sendo construídas enquanto já tinham nos imposto a nova maneira de dar aula. Estamos enlouquecendo para nos apropriar de uma linguagem que está anos-luz distante da ideal para a educação. É ultrajante que o sistema educacional seja [des]construído desta maneira, mesmo que em caráter emergencial.


Jogades ao mar, sem coletes salva-vidas


As equipes de professoras e professores, gestão e apoio pedagógico foram jogadas num barco sem remos em meio ao mar agitado. Nossas crianças sem coletes em pequenos botes individuais. Algumas sabem nadar, outras não. A situação é desesperadora e de alto risco, pra dizer o mínimo. E quem nos guia? Para onde vamos? Com qual intuito? Chegaremos em terra firme e o governo nos receberá dizendo que fez a parte dele, mas a verdade é que não sabemos quantos grandes ou pequenes humanes conseguirão chegar e

nem quando! Este é o propósito de manter um ano letivo virtual e praticamente imaginário?


Ensino não se faz à distância. Ponto. Num momento tão importante da formação humana, jogamos as ferramentas e alguns poucos materiais na mão de crianças e dizemos “construam uma casa forte!”. Que raio de educação é essa? Não é nosso papel ajudar a construir esta casa? Que autonomia têm as crianças para dar conta de um formato atropelado de “sala de aula” que nem nós fomos ensinades a viver?


Que nosso trabalho é essencial eu não tenho dúvidas, mas ele é essencial agora, quando pessoas passam fome e morrem sem os cuidados adequados, sem leitos de UTI, sem água para lavar as mãos? Qual é a prioridade: manter um canal afetivo de cuidado ou fingir que as aulas estão funcionando? Para quem? Para quantos? Onde está o para todes se apenas 29 de 199 crianças conseguem acessar a plataforma? Devemos considerar o ano letivo inválido para as 170 restantes?


Minha pitocada , estão na fase da descoberta do corpo, dos sentidos, do espaço e do outro, fase única e importantíssima para o desenvolvimento motor, da individualidade, do coletivo e do afetivo além daquele proporcionado pela família. As construções nesta fase são a base do que futuramente será a individualidade humana, portanto, o ensino remoto, apesar de emergencial, não é capaz de atender nenhuma das necessidades básicas da educação e não está chegando nem ao mínimo aceitável de estudantes atualmente.


Não liberam os auxílios


Enquanto os números de contágio e óbito só aumentam e o auxílio emergencial federal fica retido em mais um ato fascista de crueldade, não é dever de prefeituras e estados amparar o máximo de pessoas possível como as famílias em comunidades fechadas ou as que vivem em casas de palafita? Vidas seguem perdidas! Roubadas! É hora de guardar luto, cuidar dos próximos, socorrer os aflitos, se proteger! E ao invés de dar um suporte afetivo, alimentar, salarial e igualitário a TODES estudantes da cidade de São Paulo, estamos aqui trabalhando por um ano letivo que já deveria estar suspenso e nos perguntando: estão vives? Têm comida? Passam frio?


As contradições permanecem. Do lado de lá, discursos sobre o “respeito à democracia e à saúde” e, do lado de cá as crianças desamparadas, gestão e equipe de apoio correndo risco ou morrendo por serem forçados a cumprir a função de seguranças do patrimônio e professores sobrecarregados num trabalho remoto que não atende a todos. Pela televisão, os planos de reabertura são anunciados. Enquanto isso, mais uma criança perde a vida para o descaso público mascarado na subnotificação dos óbitos. Um pequeno humano que não vai voltar para escola quando a reabertura se der de fato. Mas, por enquanto, seguimos

postando as atividades no sistema. É mais uma tragédia escancarada na cidade de São Paulo.


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*Marília Moreno é professora da rede municipal da cidade de São Paulo e escritora indignada com o passado, presente e futuro do ensino público nacional. Pode ser encontrada em total isolamento em casa (o que deveria ser direito de todes) e pelo @textosdemarilia nas mídias sociais.


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